A FALTA QUE ELA ME FAZ
Se eu
quiser falar com Deus
Tenho
que aceitar a dor (….)
E
apesar do mal tamanho
Alegrar
meu coração
Gilberto
Gil – Se eu quiser falar com Deus
Li
que numa tribo africana existe um ritual onde uma cuia é mergulhada
num recipiente com um líquido amargo e é passada de mão em mão,
para que cada um dos integrantes da comunidade sorva a sua parte e
passe adiante. Simbolicamente, o ritual fala que o sofrimento nos
torna iguais, pois todos passam por ele, e, exatamente por isso, por
ter provado desse gosto amargo, é que podemos ser solidários com
quem experimenta o seu quinhão de amargor.
Agora
foi a minha hora de beber da cuia. O gosto amargo que antevia, me
fizera pedir, como o Cristo: “Pai, afasta de mim esse cálice”.
Não foi possível, bebi da bebida amarga, perdi a filha querida e a
saudade “doí latejada”.
Os
primeiros dias foram vividos com um certo atordoamento emocional,
como se não tivesse a consciência exata dos acontecimentos, como se
o que estava vivendo não fosse real. Todo o tempo a vontade era
voltar a estar com ela, poder abraçá-la, conversar, dar risada
outra vez.
Aos
poucos, fui me dando conta da realidade e buscando alguma forma de
encontrar um lugar para a saudade no meu coração pra poder
prosseguir. Encarei como terapêutica a dolorosa tarefa de dar um
destino aos móveis, objetos e roupas. Primeiro um certo receio de
tirar as coisas do lugar, como se isso fosse desagradá-la, era tão
cuidadosa com a organização do apartamento. Depois foi buscando
reencontrá-la, nos objetos, nos livros, nas coisas escritas, nas
fotografias. Nossas semelhanças, nossas diferenças, nosso afeto
cotidiano, nossa vida compartilhada, estava ali, em tudo.
Num
dos livros que encontrei lá descobri um texto que era um recado para aquele momento: A vida social das coisas: roupas,
memória e dor. Refletindo sobre a jaqueta de um amigo morto que
lhe fora dada pela viúva, Stallybrass fala como imprimimos nossas
marcas nos objetos, como eles recebem a carga da memória. Diz: “Comecei a acreditar que a mágica da roupa está no fato de que
ela nos recebe: recebe nosso cheiro, nosso suor, recebe até mesmo
nossa forma. E quando nossos pais, os nossos amigos e os nossos
amantes morrem, as roupas ainda ficam lá, penduradas em seus
armários, sustentando seus gestos ao mesmo tempo confortadores e
aterradores, tocando os vivos com os mortos".
Para
mim foi muito confortador, constatar que a marca humana deixada pela
minha filha estava lá, as roupas e os objetos estavam carregados do
seu cheiro, da presença (ausência). Mas percebi que estas marcas
estavam muito mais em nós, familiares e amigos, através de tudo que
trocamos, aprendemos neste nosso tempo de convivência.
Estas relíquias simbólicas não podem substituir a companhia real,
mas elas podem efetuar conexões do amor através da presença/
ausência, porque são capazes de trazer a memória e ao mesmo ter um
valor literal. Os casacos aqueceram as primas e tia no frio paulista
e ao mesmo tempo trouxeram a lembrança de que aquela seria uma
viagem que fora planejada para ser feita juntas. A bandeja, as taças, os pratos vão estar em outros encontros, mas vão lembrá-la a quem os recebeu. Os livros doados ao grupo de pesquisa vão ajudar a outros estudiosos de moda, que sequer a conheceram.
E
aqui estou, compartilhando com vocês esta minha trajetória de
buscar um destino para tudo que ficou. Os objetos estão contribuindo
para que possa encontrar amigas dela, algumas eu não
conhecia, conversar, descobrir outras facetas dela. Todo este
movimento tem me ajudado a aceitar a dor.
Gil prossegue falando que para falar com Deus "tenho que subir aos céus/ sem cordas pra segurar/ Tenho que dizer adeus, dar as costas, caminhar pela estrada". E nesta caminhada acredito só a proximidade com o divino e com os outros humanos me trarão consolo e quem sabe um dia, a alegria perdida.
Gil prossegue falando que para falar com Deus "tenho que subir aos céus/ sem cordas pra segurar/ Tenho que dizer adeus, dar as costas, caminhar pela estrada". E nesta caminhada acredito só a proximidade com o divino e com os outros humanos me trarão consolo e quem sabe um dia, a alegria perdida.
Emocionei... ainda mais sabendo de outros detalhes. Você foi sábia e lúcida, apesar da dor. Como te admiro!!!
Um beijo especial, cheio de carinho.
Emocionante. Meu abraço apertado, de novo, porque foi o que senti vontade de fazer.
Que dom literário lindo e delicado o seu, Marta, para expressar a saudade de Maina. Lindo texto. Emocionante.
Emocionante Martoca, me tocou fundo. Gostaria de lhe dar um abraço agora. Beijos prima e amiga
Perdi um filho maravilhoso em 17/02/2015. Sua postagem disse tudo.
Obrigada... Por me mostrar como voltar a caminhar...perdi violentamente meu filho dia 21 de junho.
Já te disse o quanto admiro a forma como vc enfrenta tudo isso, mas nada parece descrever minha admiração. Me faltam palavras sempre.
Oh! Eu que tirei essa primeira foto... s2
Postar um comentário