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domingo, 12 de julho de 2015

A FALTA QUE ELA ME FAZ


Se eu quiser falar com Deus
Tenho que aceitar a dor (….)
E apesar do mal tamanho
Alegrar meu coração

Gilberto Gil – Se eu quiser falar com Deus

Li que numa tribo africana existe um ritual onde uma cuia é mergulhada num recipiente com um líquido amargo e é passada de mão em mão, para que cada um dos integrantes da comunidade sorva a sua parte e passe adiante. Simbolicamente, o ritual fala que o sofrimento nos torna iguais, pois todos passam por ele, e, exatamente por isso, por ter provado desse gosto amargo, é que podemos ser solidários com quem experimenta o seu quinhão de amargor.

Agora foi a minha hora de beber da cuia. O gosto amargo que antevia, me fizera pedir, como o Cristo: “Pai, afasta de mim esse cálice”. Não foi possível, bebi da bebida amarga, perdi a filha querida e a saudade “doí latejada”.

Os primeiros dias foram vividos com um certo atordoamento emocional, como se não tivesse a consciência exata dos acontecimentos, como se o que estava vivendo não fosse real. Todo o tempo a vontade era voltar a estar com ela, poder abraçá-la, conversar, dar risada outra vez.

Aos poucos, fui me dando conta da realidade e buscando alguma forma de encontrar um lugar para a saudade no meu coração pra poder prosseguir. Encarei como terapêutica a dolorosa tarefa de dar um destino aos móveis, objetos e roupas. Primeiro um certo receio de tirar as coisas do lugar, como se isso fosse desagradá-la, era tão cuidadosa com a organização do apartamento. Depois foi buscando reencontrá-la, nos objetos, nos livros, nas coisas escritas, nas fotografias. Nossas semelhanças, nossas diferenças, nosso afeto cotidiano, nossa vida compartilhada, estava ali, em tudo.

Num dos livros que encontrei lá descobri um texto que era um recado para aquele momento: A vida social das coisas: roupas, memória e dor. Refletindo sobre a jaqueta de um amigo morto que lhe fora dada pela viúva, Stallybrass fala como imprimimos nossas marcas nos objetos, como eles recebem a carga da memória. Diz: “Comecei a acreditar que a mágica da roupa está no fato de que ela nos recebe: recebe nosso cheiro, nosso suor, recebe até mesmo nossa forma. E quando nossos pais, os nossos amigos e os nossos amantes morrem, as roupas ainda ficam lá, penduradas em seus armários, sustentando seus gestos ao mesmo tempo confortadores e aterradores, tocando os vivos com os mortos".




Para mim foi muito confortador, constatar que a marca humana deixada pela minha filha estava lá, as roupas e os objetos estavam carregados do seu cheiro, da presença (ausência). Mas percebi que estas marcas estavam muito mais em nós, familiares e amigos, através de tudo que trocamos, aprendemos neste nosso tempo de convivência.



Estas relíquias simbólicas não podem substituir a companhia real, mas elas podem efetuar conexões do amor através da presença/ ausência, porque são capazes de trazer a memória e ao mesmo ter um valor literal. Os casacos aqueceram as primas e tia no frio paulista e ao mesmo tempo trouxeram a lembrança de que aquela seria uma viagem que fora planejada para ser feita juntas. A bandeja, as taças, os pratos vão estar em outros encontros, mas vão lembrá-la a quem os recebeu. Os livros doados ao grupo de pesquisa vão ajudar a outros estudiosos de moda, que sequer a conheceram. 

E aqui estou, compartilhando com vocês esta minha trajetória de buscar um destino para tudo que ficou. Os objetos estão contribuindo para que possa encontrar amigas dela, algumas eu não conhecia, conversar, descobrir outras facetas dela. Todo este movimento tem me ajudado a aceitar a dor. 

Gil prossegue falando que para falar com Deus "tenho que subir aos céus/ sem cordas pra segurar/ Tenho que dizer adeus, dar as costas, caminhar pela estrada". E nesta caminhada acredito só a proximidade com o divino e com os outros humanos me trarão consolo e quem sabe um dia, a alegria perdida.

8 comentários:

Bel 12 de julho de 2015 às 15:10  

Emocionei... ainda mais sabendo de outros detalhes. Você foi sábia e lúcida, apesar da dor. Como te admiro!!!
Um beijo especial, cheio de carinho.

Jady 12 de julho de 2015 às 15:25  

Emocionante. Meu abraço apertado, de novo, porque foi o que senti vontade de fazer.

luce 12 de julho de 2015 às 20:24  

Que dom literário lindo e delicado o seu, Marta, para expressar a saudade de Maina. Lindo texto. Emocionante.

Aninha,  12 de julho de 2015 às 20:34  

Emocionante Martoca, me tocou fundo. Gostaria de lhe dar um abraço agora. Beijos prima e amiga

SONIA SILVA GOMES 13 de julho de 2015 às 10:14  

Perdi um filho maravilhoso em 17/02/2015. Sua postagem disse tudo.

Marciamolivieri@hotmail,  13 de julho de 2015 às 14:48  

Obrigada... Por me mostrar como voltar a caminhar...perdi violentamente meu filho dia 21 de junho.

Favuca 18 de julho de 2015 às 19:32  

Já te disse o quanto admiro a forma como vc enfrenta tudo isso, mas nada parece descrever minha admiração. Me faltam palavras sempre.

Rafic Ramos 12 de agosto de 2015 às 22:35  

Oh! Eu que tirei essa primeira foto... s2

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